'A história que a borracha do tempo não apagou"

Justificativa do Enredo

O Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Porto da Pedra descortina ao grande público do carnaval mais um capítulo da história do nosso país, e honrosamente, apresenta seu enredo para o Carnaval 2025. O pavilhão vermelho e branco encontrou na vastidão da Amazônia uma história que vaga entre a utopia e a realidade. Segundo Octávio Ianni, “muito do que se diz sobre a Amazônia, em prosa e verso, nas mais diversas línguas, expressa a ilusão do outro mundo”. Desta forma nos deparamos entre o possível e o insólito que forjaram Fordlândia, o projeto de Henry Ford para construir uma cidade operária na Amazônia para plantio de seringueiras, extração de látex e produção de borracha.

Fordlândia foi apresentada para muitos como a promessa de uma nova vida, a redenção que acendia nos corações um lampejo de esperança. A verdade é que parte da floresta que transformaria vidas tornou-se uma máquina de lucro e progresso de poucos, e para a grande maioria, desesperança e agonia.

Tudo isto está registrado nos livros de história, mas, não queremos replicar o cartesiano, queremos ouvir as vozes da mata. Fordlândia foi instalada no Vale do Rio Tapajós, região ancestralmente conhecida como Mundurukânia, por isso, serão os Munduruku a nos conduzir por essa história, que na verdade, é um exemplo das inúmeras tentativas de invasão, vilipêndio e cobiça das riquezas que a Amazônia guarda.

Que essa história inspire você que está lendo a lutar pela Amazônia e por quem nela habita, para quem sabe então, o mundo compreenda a sua real importância, distante da visão imaginária e exótica que ainda paira sobre ela. A floresta-mãe, inexorável ao tempo dos que não lhe conhecem, está de pé e pronta para a retomada da grande Mundurukânia.

Esta é a “História Que a Borracha do Tempo Não Apagou”,
Nós somos ponta de lança, paixão e orgulho de São Gonçalo.
Vamos à luta!


Sinopse

“Munduruku é a flecha
Munduruku, as estrelas
Munduruku são os ventos
A brisa das manhãs
Munduruku são as guerras
Munduruku é a terra
Munduruku são as crenças
E o sol que brilha no norte...”

Nós somos Munduruku! Você escuta a nossa voz? Nossa história não começa agora, mas você precisa saber...

De Karusakaibê herdamos a beligerância que nos fez “paiksés”. Tapajós! Onde ficamos as nossas raízes, no fundo das matas e profundo das águas. Somos brado da grande “Mundurukânia”, guerreiros implacáveis, arcos e flechas temidos. Pele pintada de jenipapo, alma vermelha feito brasa, incandescente, formiga-de-fogo.

As mães espirituais ensinaram: corpo e floresta são um só. Os “pariwat” que cobiçam a Amazônia nunca entenderam isso. Repare! No espelho d’água enxergam somente eles nas dimensões concretas do seu mundo que cada vez mais perde a beleza das cores na íris da verdade.

“Tapajós, Madeira
Antes minha morada
Agora repousa no fundo das águas
Memórias antigas de tempos bravios...”

Foi assim que invadiram o nosso território. Sim, invadiram! Com suas barcaças, maquinários, titãs de ferro com olhos de fogo. Transformaram o cipó em engrenagens, a cobra grande em linha de montagem, a copa das árvores e o velho tapiri em barracões de metal. O que fizeram com o nosso lugar? Não era mais Mundurukânia, eles diziam: Bem-vindos à Fordlândia!

Eis a floresta da borracha, o símbolo da sanha de riqueza! Que atraiu rapinas da cobiça de um norte diferente do nosso. Tantos outros do Nordeste, feito arigós fazendo arribação, e caboclos dos beiradões como sabiás que já sabiam onde se aninhar. Vieram todos atraídos pela promessa de uma nova vida afirmada no papel: prosperidade e felicidade! Eles só não sabiam a verdade!

Pelos rios, estradas da vida amazônica, viajaram famílias e bagagens ao encontro de uma realidade diferente. O canto dos pássaros era o apito da produção, o calor das fogueiras era o abrasar das fornalhas. No coração da mata acenderam-se luzes estranhas para poucos, enquanto a poronga alumiava os (des)caminhos de muitos nos seringais.

Os relógios giravam e não havia minuto a perder. Alucinava, atordoava, a sede de lucro e a fome de progresso alimentavam o metal-capital calando as vozes da floresta enquanto os batalhões de trabalhadores se alimentavam de enlatados estranhos mais duros que casco de tracajá. Fartura? Somente de dívidas para essa gente que sentia falta do seu peixe com farinha.

Era tudo tão confuso! Alteraram o curso do rio e a vida daquelas pessoas, eram um Brazil com Z que ninguém conhecia. Foi o estopim da revolta! Onde estava a felicidade? Cadê a prosperidade? Até mesmo a floresta não reconhecia aquelas árvores enfileiradas e não conseguia se defender do mal-das-folhas. Tramas do inimaginável, luzes se apagavam em prenúncio de falência. As pegadas formavam rastros da caminhada no sentido contrário do que um dia imaginou-se encontrar na vastidão da Amazônia.

“No murmúrio das águas
No lamento das almas
No mistério da mata
O clamor deste rio...”

O tempo, que nunca foi nosso inimigo, passou sereno feito o vento entre as folhas. Para quem nunca entendeu a floresta, ou sequer a conheceu, ele tornou-se algoz dos pesadelos que corroem as mentes e o metal erguido nas sombras da velha cidade. Fordlândia lentamente se esvaziava de tudo que um dia lhe deu formas: sonhos, vontades e perspectivas.

Ainda estamos aqui! Contando para vocês o que os velhos nos contaram na vida e nos sonhos. O que o mistério dos pajés revelou no poder das ervas e na fumaça do tauari: resgatem a grande Mundurukânia! Desenterrem as raízes, resistam. A luta agora é contra o garimpo que assoreia e contamina o Tapajós na busca insana do ouro. E que as lágrimas derramadas afluam feito o Juruena fazendo resistir nossa esmeralda das águas que fora enlameada pelos absurdos humanos.

Somos a força dos clãs! O encarnado e o branco que marcam a nossa identidade. Etnia, valentia e os nossos pés marcam o pulsar do coração da Amazônia, a mãe de todas as coisas. Permaneceremos trançando saberes milenares com a fibra das palhas, enfeitaremos as cabeças para mais quinhentas luas iluminarem os nossos diademas e vocês saberem que antes do Brasil da coroa, existe um Brasil do cocar de asas abertas para a eternidade.

Nos teus livros de história, Fordlândia é um capítulo esquecido. Mas, alguém lembrou de nós e, se temos voz, queremos ser ouvidos! Irmanados aos nossos parentes Apiaká, Borari, Maytapu, Avá-Canoeiro, Arapium e Arara Vermelha. Tupinambá, Cumaruara, Jaraqui, Tapajó e Tupaio. Por nossa gente do Tapajós, por nossas terras, por nossos lugares.

Estamos aqui! Punhos erguidos e braços dados com os caboclos da Amazônia! Para vocês não esquecerem da luta de cada seringueiro que pisou em Fordlândia. Para não serem apenas dados, e principalmente, para quem ficou, não ser apenas parte da história encrostada no velho metal corroído que paira adormecido no embaraço da mata.

Nós estaremos sempre aqui! Ensinando nossos curumins e cunhatãs a flecharem os peitos inflados de cobiça! Para que eles saibam que o único marco temporal que existe são as marcas dos nossos pés nesta terra e as cicatrizes da luta que carregamos em nosso corpo e nosso espírito. Nós não temos o tempo dos pariwat e borracha alguma vai apagar o que escrevemos hoje para vocês. Somos vozes indígenas, somos vozes caboclas, estamos vivos no rugir da grande fera...

Nós somos a Amazônia! Você escutou a nossa voz?

“Filho da selva perdido no tempo
Filho da guerra, na terra do sol
Filho da pátria tingida de sangue
Filho do povo guerreiro Brasil”